A abordagem reggiana de Loris Malaguzzi mostra que bebês e crianças são pesquisadores rigorosos e intencionais
Para aprender, a criança não precisa que a ensinem. Excelentes observadores, curiosos, pesquisadores natos, bebês e crianças têm uma capacidade surpreendente de absorver o mundo à sua volta, colocá-lo à prova, elaborar hipóteses e concluir sobre o que testaram. Constroem conhecimento. Conhecimento que faz sentido para suas necessidades de desenvolvimento tanto naquela determinada fase quanto na sofisticação neurológica que virá em fases a seguir.
Baseada em diversas evidências científicas, a médica psiquiatra (tornada educadora pela experiência cotidiana com jovens e crianças) Maria Montessori, em seu “Mente Absorvente”, demonstrou, entre outras coisas, que as crianças dão conta não apenas de pesquisar e compreender o ambiente, mas de eleger aquilo que lhes é mais importante e adequado aprender em cada fase. Não se trata apenas de inclinações pessoais e ambiente familiar, mas de possibilidades e necessidades neurológicas e fisiológicas.
Argila, barro, terra molhada: campos vastos de experimentação e pesquisa; sensações táteis, observação, encantamento, manipulação. Conhecimento produzido também com e no corpo. (Foto: Amanda Del Corso/ Acervo Carambola)
“Dou mais respeito/ às que vivem de barriga no chão/ tipo água pedra sapo”,
Manoel de Barros, O apanhador de desperdícios.
Mesmo para crianças maiores, trabalhar a argila é um desafio, uma pesquisa, uma investigação. E também um prazer: o contato com a materialidade do insumo, antes de transformá-lo em um objeto moldado, estimula um diálogo intenso entre o corpo, o desejo de criar e a resistência do material (Foto: Fabricio Remigio/Acervo Carambola)
Uma criança que explorou bastante com suas mãos e desenvolveu a contento –com tempo, espaço e experiências enriquecedoras — sua coordenação motora, tanto grossa quanto fina, será uma melhor leitora que aquelas a quem trabalhar com as mãos não foi possível, dizia a médica. Portanto, uma criança pequena que prefere construir castelos de areia a decorar letras e números está seguindo o “plano” desenhado pela natureza em seu DNA.
Ter espaço, tempo e ambiente preparado para propiciar esse aprendizado na velocidade e na direção dos interesses (pessoais e fisiológicos) das crianças é essencial para que o aprendizado real e perene se realize. Esse é um dos principais pilares da abordagem Reggio Emilia, perspectiva educacional que nasceu na cidade italiana homônima, pelas mãos do professor Loris Malaguzzi.
A educadora Vivi Cukier conversa com um grupo de crianças, entre 2 e 4 anos, sobre sessões de atividades propostas por ela a partir de interesse coletivo por construir, demonstrado de muitas formas pelas crianças. Do diálogo surgem novas possibilidades de aprofundar — ou mudar — pesquisas e investigações. (Foto: Fabricio Remigio/Acervo Carambola).
“A partir dessa perspectiva, a educação sai de uma matriz que se centra na figura do professor e do conteúdo e vai para outra em que a criança é o centro. Centro da escola e de seu aprendizado. É protagonista”, explica a diretora da escola de educação infantil Ateliê Carambola, Josiane Del Corso, que estuda a abordagem há 10 anos e aplica seus princípios na instituição de ensino que fundou e dirige.
Para Malaguzzi, o papel dos adultos no ensino infantil é ouvir a criança em suas necessidades, da forma como as comunicarem, interpretar o que vê e ouve e devolver à criança um ambiente rico, com atividades capazes de satisfazer aquelas necessidades. Essa seria a forma adequada de “ensinar”.
“Eu nem sequer sou poeta: vejo”, Fernando Pessoa. Ouvir, botar reparo, ver, dialogar e facilitar o processo da criança são premissas para educadores e atelieristas nas escolas de infância. A atelierista Raissa Cintra conversa com uma criança de 5 anos antes de uma sessão. (Foto: Fabricio Remigio/Acervo Carambola)
Escutar as crianças
No ano passado, por exemplo, a educadora Vivi Cukier percebeu um interesse de genuíno e espontâneo do grupo de crianças com as quais trabalhava ao notar a forma como elas brincavam com carrinhos recém-incluídos no acervo: alinhando, organizando, criando formas.
Vivi começou a oferecer à turma outros materiais que também sugeririam a mesma pesquisa.
Com outros materiais, a pesquisa aprofundou-se, e as crianças passaram não apenas a construir linhas organizando os objetos, como a testar outras construções.
Surgiu desse processo de observação atenta uma das propostas de pesquisa, atividades e sessões que permeou todo o ano daquele grupo e que foi explorada de muitas formas, conforme o interesse do grupo se aprofundava e oferecia novas direções a seguir.
“Não há um currículo pré-determinado ou um rotina rígida, pois a aprendizagem se organiza em torno daquilo que as crianças desejam e precisam pesquisar. E elas nos mostram esse interesse de diversas formas”, explica Josiane Del Corso.
Gustavo, 2 anos e 9 meses, junto com os colegas, alinha carrinhos pela sala. Utilizando todos os brinquedos disponíveis, ele traça uma linha sinuosa, que corta a sala, desviando de obstáculos. (Foto: Vivi Cukier/Acervo Carambola)
Além das brincadeiras e de muito prazer, a pesquisa suscitou o debate e a construção de teorias provisórias, pelas crianças, sobre temas complexos como equilíbrio, peso, velocidade, altura, gravidade. Também rendeu muita fantasia e a criação de um rico jogo simbólico, com castelos, princesas, praias, monstros, dragões e elementos essenciais para o desenvolvimento emocional das crianças nessa faixa etária.
Documentação pedagógica
Para ser um bom ouvinte e um bom intérprete da linguagem e dos interesses infantis e, dessa forma, facilitar a construção do conhecimento de “dentro para fora”, ou seja, autenticamente pela criança, o adulto deve estar presente e relaxado, em um ambiente preparado e igualmente relaxado.
E é essencial, também, documentar o processo de aprendizagem como forma de narrar o percurso infantil mas, principalmente, antecipar demandas da criança. Só desse modo, diz Malaguzzi, será possível preparar o ambiente para a pesquisa da criança.
A documentação acontece em muitos momentos, mas começa com o educador — observador atento — registrando (com fotos, vídeos, anotações) momentos importantes da aprendizagem, da produção de sentido, dos relacionamentos e das criações artísticas e lúdicas das crianças no ambiente escolar.
No entanto, não se resume a isso. Esse material coletado é avaliado e interpretado, à luz de diversas teorias e também à luz da sensibilidade do educador, e transformado em registro interpretativo do percurso do grupo, inclusive do percurso do professor como “intérprete” privilegiado das crianças com as quais se relaciona e se vincula.
“Tornar a aprendizagem visível”: o material coletado — e sobre o qual o educador e a equipe refletem — transforma-se em vasta documentação, que expõe a forma e o conteúdo da aprendizagem. Na foto, uma mãe toma contato com essa documentação durante a mostra anual da escola. (Foto: Fabricio Remigio/Acervo Carambola).
Para mostrar o percurso formativo das crianças, o que elas produzem recebe destaque na escola. Na foto, o trabalho das crianças sobre o Universo exposto de dois modos: de um lado, os desenhos feitos diretamente na parede; do outro, um compilado de frases com as teorias infantis sobre o tema. (Foto: Fabricio Remigio/Acervo Carambola).
Torna-se então ponto de partida para novas experiências — ou para o aprofundamento das pesquisas já em andamento — e transforma-se em um vasto e diverso material artístico, gráfico ou virtual, um verdadeiro acervo do processo criativo da comunidade escolar.
“A nossa obra de adultos não consiste em ensinar, mas sim em ajudar a mente infantil no trabalho de seu desenvolvimento”,
Maria Montessori. Mente Absorvente.
Tanto a abordagem de Malaguzzi quanto a de Montessori, assim como outras que reconheçam a autonomia intelectual infantil (como a “educação ativa” de Rebeca Wild e Margarita Valencia, por exemplo, ou mesmo a “autopoiesis”, de Humberto Maturana), possibilitam o aprendizado genuíno para as crianças e exigem, do adulto, uma nova postura diante da infância.
Do adulto, espera-se não mais a doação “do saber”, mas a doação de tempo e de bons ouvidos. Não mais a posição de “mestre”, mas a de companheiro numa jornada de descobertas — muitas vezes compartilhadas.
O blogue:
O blogue Ateliê Carambola é mantido pelo Centro de Pesquisa e Documentação Ateliê Carambola e tem como principal objetivo informar sobre a infância à luz de teorias, práticas e ciências que devolvam à criança seu lugar nobre no mundo. Dar voz às crianças e a seu pensamento singular é, em última análise, a razão do veículo.
Para pais, educadores, pesquisadores, artistas e interessados, o canal pretende apresentar discussões aprofundadas, exemplos cotidianos e pontos de vista únicos sobre temas críticos na contemporaneidade quando o assunto é criança, educação e maternidade/paternidade.
Para saber mais:
Na rede:
Reportagem especial TV Univesp
Reggio Children (para quem lê em inglês ou italiano);
Associação Rosa Sensat (para quem lê em espanhol ou catalão)
Blog Lar Montessori.
Nos livros:
“Tornando visível a aprendizagem das crianças”, Linda Kinney e Pat Wharton, Ed. Penso.
“As cem linguagens da criança — vol. 1” e “As cem linguagens da criança — vol. 2”, Carolyn Edwards, Lella Gandini, George Forman, Ed. Penso.
“Mente Absorvente”, Maria Montessori, Ed. Nórdica.
“A Criança”, Maria Montessori, Ed. Nórdica.
“Libertad y límites. Amor y respeto”, Rebeca Wild, Herder. (para quem lê em espanhol)