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Transver o Mundo


A contribuição infantil para a construção da narrativa e do sentido de tudo aquilo que nos cerca, nos afeta e mobiliza



— Olha, está escuro, mamãe.

— É, anoiteceu já.

— Isso significa que o céu foi embora e veio o espaço. Agora a gente está vendo só o espaço…

— O céu foi embora? Como assim, filho?

— O céu é aquele azul claro. Ele vem e vai com o sol. Agora ele deve estar lá no Japão, onde é dia. Quando o sol vai pro Japão, o céu vai junto, e aí a gente consegue ver o espaço.

— E qual é o espaço então?

— É esse aqui, o violeta-quase-preto, onde ficam as estrelas, os planetas, os meteoros e os buracos negros.


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Os adultos que permitem a si mesmos ouvir as crianças geralmente se surpreendem com os diálogos da infância. Surpreendem-se com a perspicácia, com as hipóteses e conclusões, com a sofisticação e o refinamento e também com a acuracidade das análises que, mesmo por vias mais subjetivas e imaginativas que o pensamento racional adulto, fazem sentido.


O pensamento infantil é rico, metafórico, subjetivo, inventivo, criativo, artístico, potente. Pura poesia. E dá conta da vida através de diversas teorias provisórias que as crianças produzem no embate entre suas dúvidas e suas hipóteses. Teorias e hipóteses essas que partem do interior, “dialogam” com as experiências reais da criança sobre o mundo (não são, portanto, “invencionices”) e se fazem e refazem a cada nova experimentação (interior e exterior, subjetiva e objetiva) da criança.


Segundo Gino Ferri, que foi por 25 anos professor em Reggio Emilia e hoje atua como formador de professores em Barcelona, na Associação de Mestres Rosa Sensat, é também por meio das relações que crianças e adultos formam-se, aprendem, teorizam, testam, conhecem, constroem e identificam -a si e aos outros. E relação acontece apenas quando há escuta. Aberta, sincera, atenta, que leva o“eu” ao lugar do “outro” e vice-versa.

Crianças investigam, com a lupa, pequenos insetos que encontraram vivendo no tronco da árvore. O conhecimento acontece na relação e no diálogo sem fim com o subjetivo e o objetivo; o que “está dentro” e o que “está fora”.

Crianças investigam, com a lupa, pequenos insetos que encontraram vivendo no tronco da árvore. O conhecimento acontece na relação e no diálogo sem fim com o subjetivo e o objetivo; o que “está dentro” e o que “está fora”.


Escutar, dessa forma, é um dos objetivos das escolas de infância e de uma pedagogia voltada para a autonomia e o protagonismo da criança. “Não se trata de ‘dar voz às crianças’. Elas já têm voz. Se trata, na verdade, de levar os adultos a ouvir o que a infância nos diz”, explica o coordenador e professor do curso de especialização em Educação Infantil da Unisinos (RS) e doutorando em Educação pela USP, Paulo Fochi, consultor da escola de Educação Infantil Ateliê Carambola.


“Se podes olhar, vê/ Se podes ver, repara.” José Saramago


Cem linguagens

A questão que se coloca é também uma questão de forma, não apenas de conteúdo. Porque o pensamento infantil é singular no que fala e no como fala. Loris Malaguzzi, o educador que fez da cidade italiana de Reggio Emilia um modelo educacional reputado no mundo todo justamente por sua “pedagogia da escuta”, nos ensina que a criança tem cem linguagens.


Ou seja, expressa-se de incontáveis formas, tal qual um artista, e com uma perspectiva nova, porque inaugural. Olhar algo pelas primeiras vezes é sempre olhar de um ponto de vista radicalmente diverso daqueles que já viram muitas vezes.


É a partir (e por meio) desse conteúdo rico, expresso de maneiras diversas, mas subjetivas e bem menos lineares que o pensamento mais analítico e pretensamente mais objetivo do mundo “maduro”, que o adulto atento é convidado, pelas crianças com as quais convive, a (re) ver. Ou a “transver” o mundo, como nos convida Manoel de Barros, o poeta menino, cujo nascimento completa 100 anos em 2016.


“A arte não tem pensa:/ O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê/ É preciso transver o mundo.” Manoel de Barros.


Os desafios que se colocam para a sociedade nesse começo de milênio são também diferentes dos que já foram enfrentados. Maria Montessori dizia que, para um mundo melhor, era preciso que se abrisse espaço para as crianças atuarem nele — e crescerem nele.

A narrativa infantil não é algo que precisa ser moldado à forma adulta para ter valor e contribuição. As crianças são capazes, ainda crianças, de narrarem, de mudarem, de transformarem e de iluminarem pontos que a sensibilidade adulta já não consegue desobscurecer.

E uma das ferramentas que o adulto tem à disposição para expor e interpretar essa narrativa tão potente e prenhe de sentido, especialmente no âmbito escolar, é a documentação pedagógica. Não o registro das falas, atividades e produções, mas a documentação de fato.




Voltando a Gino Ferri, da Rosa Sensat (e que estará no Brasil para um Seminário Internacional justamente sobre documentação pedagógica a convite do Centro de Pesquisa e Documentação Pedagógica da Ateliê Carambola): as relações são primordiais no processo de escuta. Não se ouve sem se relacionar genuinamente.

Esse relacionar-se genuíno permeia a documentação pedagógica e propõe um dialogar infinito entre o adulto (o educador, no caso do ambiente escolar que estamos supondo) e a criança. O pensamento subjetivo infantil complementa o racional (ainda sobrevalorizado em nossa sociedade) e dessa “conversa” brotam outras.

Sem hierarquias a criar ou defender, os modos de ver combinam-se para dar conta da complexidade do momento e da potência de que somos feitos. Somos complexos, sofisticados, diversos.


Transver o mundo é enxergar o que pode ser sentido e ampliar outras sensibilidades. As crianças são companheiras essenciais nisso.


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